
“A verdade era que, de vez
em quando, ocorria que as palavras dos mortos coincidiam com o que estavam pensando
os vivos (se é que uns estavam vivos e os outros estavam mortos). You so beautiful. Je ne veux pas morir san
avoir compris pourquoi j’avais vécu. Um blues, René Daumal, Horacio
Oliveira, but you gotta die some day, you
so beautiful but. E era por isso que Gregorovius insistia em conhecer o
passado da Maga, para que viesse a morrer um pouco menos dessa morte para trás,
que é a ignorância das coisas arrastadas pelo tempo, para fixá-la no seu
próprio tempo, you so beautiful but you
gotta, para não amar um fantasma que se deixa acariciar o cabelo debaixo da
luz verde, pobre Ossip, e como estava acabando mal aquela noite!, tudo tão
incrivelmente tão, os sapatos de Guy Monod, but
you gotta die some day, o negro Ireneo (mais tarde, quando ganhasse
confiança, a Maga lhe contaria aquela história de Ledesma, o incidente dos dois
caras na noite de carnaval, a saga completa de Montevidéu). De repente, com uma
perfeição desapaixonada, Earl Hines propôs a primeira variação de I ain’t got nobody, e até Perico,
perdido numa leitura remota, levantou a cabeça e ficou escutando. A Maga encostara
a cabeça contra o braço de Gregorovius e olhava o chão, o pedaço de tapete
turco, uma fibra vermelha que se perdia junto da parede, um copo vazio ao lado
do pé da mesa. Queria fumar, mas não iria pedir um cigarro a Gregorovius, sem
saber por que não iria pedir, e também não o pediria a Horacio, mas sabia por que
não iria pedi-lo a Horacio; não queria olhá-lo nos olhos nem que ele risse outra
vez, vingando-se dela, por estar colada a Gregorovius e por não se ter
aproximado dele durante toda aquela noite. Desamparada, ocorriam-lhe pensamentos
sublimes, citações de poemas de que se apropriava para sentir-se no próprio
coração da alcachofra, por um lado, I ain’t
got nobody, and nobody cares for me, o que não era certo, já que pelo menos
dois dos presentes estavam mal-humorados por causa dela e, ao mesmo tempo,
recordou um verso de Perse, algo como Tu
est là, mon amor, et jê n’ai lieu qu’en toi, onde a Maga se refugiava,
apertando-se contra o som de lieu, de Tu
est là mon amour, a suave aceitação da fatalidade, que exigia fechar os
olhos e sentir o corpo como uma oferenda, algo que qualquer um podia tomar e
manchar e exaltar, como Ireneo, e que a música de Hines fazia coincidir com
manchas vermelhas e azuis...”
In O jogo da amarelinha,
Julio Cortázar, Civilização Brasileira, RJ, 2013.

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