Começamos hoje a publicação em capítulos de trabalho produzido durante o
estudo LEITURA E ESCRITA, no percurso pela literatura
fantástica.

1º capítulo:
NO FUNDO, NÃO HAVIA
ÁGUA
Os urutaus são aves
noturnas que vivem nas regiões mais quentes das Américas; elas estão profundamente
inscritas no imaginário da gente americana, pois suas características estimulam
a criação fantástica. O Urutau é também chamado
“Mãe-da-Lua” porque, sem mover a cabeça, acompanha o movimento do astro por uma
fissura linear nas pálpebras fechadas, ou ainda de “Emenda-toco”, porque
desaparece em troncos de árvores, preferencialmente em paus secos e
apodrecidos, camuflando-se através da plumagem grísea e de uma absoluta
imobilidade. ‘Urutau’ é uma corruptela do tupi-guarani Guyra (ave) e Táu
(fantasma) ou uma onomatopéia do canto da ave, canto plangente, em três ou
quatro notas graves, sempre decrescentes. Várias lendas sertanejas contemplam o
urutau. "O canto dessas aves noturnas,
entre melancólico e fúnebre, é considerado poético, por uns, agoureiro por
outros; sem dúvida impressiona fortemente quando, alta noite, ressoa sonoro na
mata. (...) Talvez ‘dó - sol - mi bemol – dó’, harmônicas na afinação e no
volume, imitam perfeitamente um oboé”. (Rodolpho
von Ihering, Dicionário dos animais do Brasil)
"Todo o mundo
dormindo. Só o chochôrro mateiro, que sai de debaixo dos silêncios, e um ô-ô-ô
de urutau, muito triste e muito alto". (Guimarães Rosa, Grande Sertão:
Veredas)
"O urutau no fundo da
mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas
de verdura, vão ecoar ao longe como um toque lento e pausado do ângelus". (José
de Alencar, O Guarani)
As dores eram inimagináveis; havia horas ela suspirava e se contorcia; o
corpo era apenas uma barriga fora de controle. A mulher era uma barriga que se dilatava
e, em seguida, se contraía segundo uma alheia vontade. A mulher imaginava uma
imensa onda marinha elevando-se dentro de si e, logo, invadindo tudo: engolindo
seu corpo, inundando o quarto, a casa, o mundo. E tudo terminava num afogamento
de tudo.
Então, a mulher reagia. Não viera ao mundo para ser afogada, mas para
cumprir os projetos maravilhosos de uma vida vitoriosa.
O quarto: frio, claro, frio, odioso, frio, piegas, frio. As pessoas:
quatro. Três delas inteiramente cobertas de branco, incluindo uma touca e uma
máscara: dois homens e uma mulher. E ali estava também outro homem: sério,
muito sério, pode-se dizer carrancudo, de braços cruzados, vestindo um ridículo
avental verde que lhe chegava aos pés; e para piorar, pensou, touca e máscara igualmente
verdes. Risível. Parecia um desolado papagaio mudo e murcho. Continuou pensando.
Olhou-o por mais um instante: sem dúvida era ridiculamente cômico. Na
verdade, achava o acontecimento de uma estupidez ridícula; absurda e
desagradável. Queria terminar com aquilo logo.
O homem sério e murcho estava imóvel de braços cruzados e ela, mais uma
vez, entre um pico e outro de dor lancinante, perguntou-se sobre o que se
passava dentro da cabeça daquele homem. Mas lembrou-se imediatamente de que desistira
disso havia muito tempo; agora, havia muito, desconsiderava os pensamentos dele;
considerava-os perigosos aos projetos de uma vida exitosa e, assim, pusera um
definitivo fim a qualquer consideração. Os
olhos do homem, como sempre, estavam voltados para algum lugar ilocalizável.
Não se lembrava, havia muito tempo não se lembrava, de quando ele lhe olhara
dentro dos olhos. Mas houvera uma última vez, lembrava-se bem. Não se lembrava
quando, mas houvera uma última vez, lembrava-se, e, mais uma vez, um tremor inominável
estreitou-lhe o peito. Houvera uma última vez, lembrava-se disso muito bem.
Nada mais.
Magda Maria Campos Pinto
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